segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Um homem de fibra!

Por Ruth Tupinambá


 Quando conheci seu Jayme, já ele era casado e pai de muitos filhos, e eu simplesmente uma garota por demais curiosa.
Digo curiosa porque sua figura já me intrigava e me chamava a atenção. Ele era diferente das pessoas que eu conhecia.
Nesta época, eu só pensava em brincar e estava sempre em casa dos tidos Joaquina e Basílio, seus vizinhos, na Rua Dr. Veloso, onde o via várias vezes diariamente.
Ele era metódico, tinha hora certa para o almoço, o café, o jantar e, à tardinha, já escurecendo, gostava de dar uma volta, sempre impecável nos seus ternos de linho branco. Chegava até o bar do seu Helvécio (um sergipano seu amigo) e lá se encontrava com os amigos, onde se reuniam para um bate papo, desopilando o fígado com as novidades da terra, as anedotas e, às oito horas, estava de volta.
Diziam que era bravo, exigente com a família, enfim, um grande passador de pitos.
Quando ele surgia na esquina, muitas vezes eu estava pulando maré com as companheiras, encolhíamos ressabiadas, para lhe dar passagem. Não sei mesmo se ele nos via, passava tão sério!
Durante muitos anos esta foi minha impressão do seu Jayme e sentia mesmo que ele me achava uma regateira, sempre pulando e correndo naquele passeio largo em frente à sua casa, onde seus filhos nunca apareciam.
Os anos forma passando enquanto eu crescia e começava a entendê-lo e admira-lo. Por trás daquela máscara fechada se escondia um caráter nobre, honesto e íntegro a toda prova.
Quando se é criança, a cabeça é cheia de fantasias, tudo nos parece extraordinário e absurdo a ponto de nos encabular.
Mais tarde, fiquei sabendo sua história. O tio Basílio contava com admiração, sua vinda de Portugal para o Brasil quando, órfão de pai aos treze anos, resolveu enfrentar a terra de Cabral, acreditando em suas riquezas.
Que menino extraordinário!- dizia o meu tio-, e que coragem Atravessar o oceano sem parentes e sem dinheiro!
Passada a fase da aventura, o garoto corajoso viera das margens do Tejo, enfrentou duros trabalhos, ganhando a confiança dos patrões e ocupando vários postos na firma Gomes de Castro, para a qual viajou dezesseis anos.
Ele chegou aqui quando Montes Claros não era bem assim, bonita e civilizada como hoje, fazendo inveja a muitas cidades irmãs.
Ele veio quando só os tropeiros e os cometas tinham acesso. Seu Jayme foi um dos grandes e valorosos cometas e, como tal, amou Montes Claros como só um filho bom o faria.
Enfrentando mil dificuldades, trazia nos lombos dos burros aquelas mercadorias do Rio de Janeiro, abastecendo nossa praça, suprindo as necessidades daquela gente, privada dos centros civilizados, trazendo-lhes ainda a experiência de homem culto, dinâmico e inteligente, e ainda sua amizade e dedicação.
Naquele tempo, em que um fio de barba valia como documento, ele soube valoriza os sertanejos e nele confiar. Os negócios eram feitos na base da amizade, da boa fé e facilitados. Enchia de mercadorias suas prateleiras e armazéns, sem exigir-lhes os juros, dando-lhes também tempo necessário para dispor delas e os lucros chegarem às gavetas dos simples negociantes.
A vida era sem grandes emoções e acontecimentos que pudessem modificar aquela tranqüila rotina. E assim, os cometas tiveram sua época em Montes Claros e seu Jaime, como tal, marcou sua presença.
Aquela cidade pacata, dormindo tranquilamente sob um luar de prata, embaladas pelas serenatas e um violão choroso, era muitas vezes despertadas do seu sono, ouvindo os tilintas dos guizos e o som compassado dos cascos dos animais no interminável calçamento de pé-de-moleque daquelas ruas estreitas...
De repente, a cidade se animava, crianças, adultos e velhos chegavam às janelas para apreciar sua passagem.
As arriatas de prata brilhavam à luz dos primeiros raios de sol e a madrinha da tropa enfeitada de guizos e peitorais trabalhados, mantas e baixeiros corridos, ia na frente, como uma baliza pedindo passagem, à procura de pousada, descanso e alimento para aqueles obedientes e incansáveis animais.
Hospedagem para os destemidos cometas era o que nunca faltava. Eles eram recebidos com festa e tratados a pão de ló... Amparados pelas famílias principais, desejados pelas donzelas casadoiras, que sonhavam com o seu príncipe encantado.
E assim era seu Jayme recebido em Montes Claros. Foi, em verdade, um dos maiores cometas que por ali passou. Trazia na sua bagagem os melhores tecidos de algodão, sedas, lãs e linhos. Louças, chapéus, calçados, perfumarias, artigos para presente, tudo importado dos grandes centros europeus. Ferramentas para a lavoura, arame farpado e outras ferragens necessárias.
Seu Jayme conquistou Montes Claros com sua distinção e cavalherismo. Deixou definitivamente as belezas da capital brasileira com suas lindíssimas sereias, a civilização pela humilde singela do nosso sertão montes-clarense.
Com a meiga companheira, fixou aqui sua residência. Dona Laurinha, sempre ao seu lado, num companheirismo sem par, ajudou-o a constituir uma grande família e um patrimônio.
Dedicou-se, ao comercio de algodão e foi também sócio da Fábrica de Tecidos do Cedro, a convite de seu amigo e companheiro Luiz Pires.
Tornou-se, mais tarde, um dos maiores invernistas e o seu gado selecionado enchia as pastagens do Rio Verde.
Foi um chefe de família exemplar, e com inteligência e espírito de liderança ajudou nossa comunidade a solucionar os cruciantes problemas daquela época. Foi um rico sem avareza e sem egoísmo. Possuía várias casas de aluguel, mas parece-me que fazia isto mais para ajuda as pessoas, pois a renda era tão pequena! Nunca soube explorar seu inquilino, pelo contrário, de muitos nem cobrava o aluguel. Era interessante a consideração que tinha pelo inquilino, quando resolvia subir o aluguel. Escrevia-lhe uma longa carta, dando explicações e pedindo desculpas para subir uns poucos cruzeiros.
Mais tarde, já casada, fomos vizinhos e inquilinos seus a rua Dr. Veloso, quando tive a felicidade de conhece-lo de perto e com ele conviver, quando já velho, aposentado e um pouco cansado, mas com a mesma lucidez e inteligência. Adorava conversar conosco e contar os casos de sua juventude, quando era cometa e cavalgava pelo sertão, com sua comitiva, cheio de entusiasmo e desejo de vencer. Tinha especial admiração por Armênio e, todos os domingos, esperava-o em sua casa para um uísque antes do almoço. Fazia disso um capricho que o Armênio procurava atender, o que muito o alegrava. Sempre que chegava à porta, ele estava na varanda tomando sol. Fazia-me várias perguntas, inclusive se já estava ganhando mais e trabalhando menos, pois achava o salário de professor uma injustiça.
Certa vez, ele disse-me:
- Dona Ruth, acho que vou aumentar o aluguel da sua casa. Está muito barato. Não dá nem para a Célia comprar um vestido (Célia era sua filha caçula).
Eu concordei plenamente. Era realmente muito barato.
- Quanto a senhora pode pagar?
Nessa época era cem cruzeiros o aluguel. Então propus pagar-lhe quinhentos cruzeiros.
Ele ficou horrorizado e nervoso, passou-me uma grande descompostura, dizendo-me:
- A senhora está muito rica, é o que parece, e até um pouco atrevida. A senhora vai pagar só duzentos cruzeiros, nem um tostão a mais.
Posso assegurar, por experiência própria, foi o melhor e o mais consciencioso senhorio que existiu nesta terra. Se ainda fosse vivo, por certo estaria muito chocado e desiludido com o nosso meio comercial de hoje, cujos cambalachos e explorações estão chegando ao auge.
Ele que foi tão justo, tão honesto, por certo, sentir-se-ia terrivelmente envergonhado diante deste caos.
Mas ele se foi, para tristeza nossa e de todos que o conheceram, com ele conviveram e dele receberam tantos favores e provas de amizade.
Deixou marcas indeléveis na nossa sociedade, as quais oi tempo jamais conseguirá apagar.
Entretanto, de onde está, deve sentir-se alegre e feliz vendo que seus filhos não foram corrompidos e procuram seguir seu exemplo, com a mesma honestidade, dinamismo e liderança (cooperando e trabalhando pela nossa cidade), tacos característicos de um homem de fibra!


(N. da Redação do montesclaros.com: Ruth Tupinambá Graça, de 94 anos, é atualmente a mais importante memorialista de M. Claros. Nasceu aqui, viveu aqui, e conta as histórias da cidade com uma leveza que a distingue de todos, ao mesmo tempo em que é reconhecida pelo rigor e pela qualidade da sua memória. Mantém-se extraordinariamente ativa, viajando por toda parte, cuidando de filhos, netos e bisnetos, sem descuidar dos escritos que invariavelmente contemplam a sua cidade de criança, um burgo de não mais que 3 mil habitantes, no início do século passado. É merecidamente reverenciada por muitos como a Cora Coralina de Montes Claros, pelo alto, limpo e espontâneo lirismo de suas narrativas).

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