domingo, 3 de abril de 2022

AS AVENTURAS DE TRÊS AVIADORES

O texto abaixo é a reprodução de uma matéria publicada em um jornal não identificado de Montes Claros, provavelmente nos anos 80, tratando dos pioneiros da aviação no Norte de Minas:

Toninho Rebello - um dos pioneiros da aviação em Montes Claros/MG

"Para quem chega hoje ao aeroporto de Montes Claros, seja para tomar um avião da Nordeste, um  Boeing da Varig ou fretar um dos rápidos aparelhos da Servi-Táxi, descansando a vista na muda contemplação da moderna pista e instalações do aeródromo, não chega, por certo, a imaginar a outrora sucessão de aventuras, existentes para que isso pudesse se tornar realidade. Nem lhe vem à mente quem foram os aviadores que, desafiando as precárias condições da época, trataram de abrir caminho com bravura - a exemplo dos bandeirantes -, para Montes Claros se estruturar como um pólo a(...)ório. Fica até difícil recordar o velho aeroporto montesclarense, agora reduzido a uma quase demolida e nostálgica construção de dois pavimentos. (A própria pista - antigo campo de pouso dos DC-3 -. há muito deixou de ser visível, sufocada por um denso matagal).

"E se tudo isso já fica difícil relembrar, é, de certo modo, impossível se [faz]er qualquer exigência para um mais avançado retrocesso à história fascinante de nossa aviação, quando os novos pioneiros, representando a sede do terminal aéreo local, tinham apenas uma humilde casinhola, e decolavam, ininterruptamente, nos renomados "Paulistinha", aviões prediletos - ainda hoje - das escolas de pilotos civis.

Exemplar do "Paulistinha", pertencente ao acervo do Museu Aeroespacial - foto Ricardo Padovese

"Pois foram exatamente três pessoas os responsáveis pelo início das atividades aéreas em Monte Claros e no Norte de Minas em geral: Flamarion Wanderley - o principal -, o ex-prefeito Antônio Lafetá Rebello, e o médico Nathércio França. Para tristeza coletiva, com exceção do querido Toninho Rebello, os outros dois aviadores faleceram recentemente. Os que acompanharam suas existências, todavia, sabem que não partiram sem deixar uma série de benefícios à cidade, mesmo fora da aviação, setor onde não mediram esforços para crescer.

"Num relato saudosista, o ex-prefeito Antônio Lafetá Rebello, comodamente instalado, descalço, numa cadeira da varanda de sua casa, situada no miolo da velha rua Marechal Deodoro, contou algumas das situações delicadas em que, juntamente com Flamarion e Nathércio, ele foi obrigado a passar voando. Pela descrição das aventuras, deduz-se logo o quanto a aviação no passado, quer seja pelo ardor dos aviadores - reforçado pela inexistência de opções de lazer ou "hobby" -, quer seja pelo espírito aventureiro, foi coroada de momentos heroicos (para não mencionar temerários), supostamente inacessíveis aos atuais modernos homens do ar. "Voar era mais que saber manobrar um avião", exclama Toninho, recordando a intensa movimentação do Aeroclube de Montes Claros.

"Naquela sua humildade de sempre, característica que o imortalizou como o melhor e mais sociável prefeito da "Princesa do Norte", aliada com o indiscutível talento administrativo, Toninho Rebello, ao falar da aviação do "seu tempo", fez questão absoluta de se excluir de qualquer mérito de pioneiro, afirmando que seus dois colegas aviadores - Flamarion e Nathércio - "são os únicos que merecem as honras nesse sentido". A história da cidade, entretanto, é justa no seu parecer, e nela Toninho tem seu registro insigne na aviação, pois fez um ótimo trabalho à frente da presidência do Aeroclube de Montes Claros, devidamente assessorado pelos inseparáveis colegas de aventuras aéreas - Nathércio e Flamarion.

Primeira turma do Aeroclube de Montes Claros -Toninho Rebello é o primeiro de uniforme brando, do centro para a direita da foto 

"Somente para dar uma ideia da extensão do amor que eles tinham às atividades aéreas - um sentimento inabalável, digamos -, Toninho disse que perdeu quatro colegas em acidentes graves, havendo muitos que se salvaram (um, inclusive, caiu dentro do cemitério, mas não teve nada). "Não podíamos desanimar por causa disto. São coisas que, naquele tempo, eram muito comuns..." - justificou. A manutenção das aeronaves era conduzida precariamente, e a maioria voava sem ter certeza das exatas condições de seus aparelhos. Toninho, sorrindo aberto, recorda:

"-Voei inúmeras vezes com um só magneto. Aliás, isso era rotina. Já decolavam com o avião em pane. E, engraçado, não tínhamos medo nenhum de ir ao chão. (A perda de um magneto, em "Paulistinha", implica na queda direta de 75 RPM, neutralizando-se a reserva. Se caso o único magneto também pifasse, o motor seria "cortado" imediatamente, tipo quando se injeta a "mistura rica" no "check" de cabeceira).

"Além da falta de peças originais, não existia ao menos um mecânico autorizado, que pudesse revisar os aviões periodicamente. A ausência não era um empecilho ao voo, com cada aviador tratando de fazer a "inspeção primária" e, constatado o defeito no avião, consertando-o do melhor jeito que podia. "Medo de voar? Jamais ouvi essa frase no Aeroclube!" - afirmou Toninho. E novamente sorrindo, desta vez meio matreiro, mistura de saudade e satisfação, ele contou o pouso "não forçado" que fez em companhia do médico Nathércio França, num milharal próximo a Francisco Sá:

"- Do alto, a plantação parecia uma pista verdinha, convidando para o pouso. Não resistimos à tentação, e efetuamos uma "picada" no manche do "Paulistinha", aproveitando a tarde calma, sem turbulência. Pousamos ao lado da plantação, sentindo os pedais se ressentirem no toque veloz da terra preparada para receber o milho. Era o espírito da aventura que valia...


Aeronave Stearman A76C3, da Força Aérea Brasileira - local e data desconhecidos - Acervo pessoal de Toninho Rebello

"Nem todos os voos, como Toninho confessou, tiveram caráter de recreio. Houve alguns suicidas, afortunadamente completados sem maiores problemas. Uma vez, por exemplo, regressando para Montes Claros, provenientes de um lugarejo próximo a Paracatu, Toninho e um preocupado passageiro sentiram, de perto, a força medonha da natureza: chegando à simpática Jequitaí, antiga terra dos diamantes, atualmente mais uma povoação esquecida, um vento de frente, prenúncio indisfarçável de uma violenta tempestade, o obrigou a fazer meia-volta e pousar num campo não muito distante:

"- O vento estava nervoso; não deixava o avião subir ou avançar normalmente. Tínhamos a impressão, olhando para baixo, de estarmos parados no ar, devido à pequena velocidade desenvolvida pelo aparelho. O jeito foi efetuar uma curva a 180 graus e buscar, o mais rápido - antes que a tempestade nos colhesse - um lugar para aterrisar. Havia um campo a cerca de cinco minutos de voo, mas era um pouso arriscado, pois eu não conhecia as condições da pista. Mesmo assim, confiando na sorte fiz o procedimento de praxe e entrei firme na cabeceira, com o velho "Paulistinha" se recusando a descer, apesar de eu ter cortado o motor bem no começo da reta final, limitando-me somente às "rajadas" curtas, receando que o vento - agora de través - o desviasse da pista. Utilizando o manche em movimentos delicados, porém firmes, consegui neutralizar a perigosa oscilação das asas, enquanto via o maltratado campo de pouso crescer diante dos meus olhos, até que, finalmente, num baque pachorrento, o trem dianteiro tocou o solo, engolindo a pista com voracidade...

"Quando Toninho pensava ter se saído bem, esperando apenas que a bequilha e a cauda do avião se abaixassem, eis que surge um imprevisto: um pedaço de árvore, que fora cortada às pressas, colidiu com uma das rodas do "Paulistinha". O impacto foi o suficiente para o leve aeroplano sair "capotando" com piloto, passageiro e tudo. Milagrosamente, as avarias não chegaram a impedir que ele voltasse a voar no mesmo dia, decolando após ter certeza de que não seria colhido pela tempestade (passou ao largo). E decolou bem mais leve, sozinho, posto que seu passageiro jurara não voltar a pôr os pés dentro de um avião.

"De outra feita, procedente da divisa da Bahia, Toninho Rebello e Flamarion Wanderley voavam (cada um num avião) em paralelo, mais ou menos 300 metros um do outro. Os dois "Paulistinha" ronronavam gostoso , e tudo indicava que a viagem iria ser normal. Ledo engano. Com 15 minutos de voo, o aviador Flamarion percebeu espantado, que estava pingando gasolina em seus joelhos. "O tanque estava vazando!" - pensou. E o depósito de combustível ficava bem em cima. Sem perda de tempo, ele fez vários movimentos bruscos no manche, incluindo as asas, seguidamente, e empreendeu o regresso ao pondo de partida. Toninho, companheiro leal, entendeu o sinal do amigo, e efetuou também uma curva para a esquerda, pousando atrás de Flamarion. No solo, os dois procuram possíveis vazamentos do tanque, "picando" e "cabrando" a aeronave pela cauda, mas não encontraram nada anormal. Concluíram que deveria ser o restolho de alguma gasolina, acumulada na carenagem do motor. E voltaram a decolar, ansiando pela hora de chegar a Montes Claros. 

"Ao completar 15 minutos de voo, atingindo exatamente o ponto em que haviam regressado, os dois se lembraram de um detalhe muito importante: gastaram - e não repuseram - meia hora de gasolina (de voo). Esse tempo, somado como o que dedicaram à vistoria (20 minutos), totalizava 50 minutos. E pelos cálculos anteriores, caso não houvesse nenhum atraso, eles chegariam a Montes Claros às... 17h30min, quinze minutos antes do por do sol. Com o atraso, se não desviassem a rota aterrariam às 18h20min. ou seja, já de noite! Foi quando surgiu uma dúvida atroz: a gasolina seria suficiente? De imediato, descartaram a hipótese  de - mais uma vez - tornar a regressar, resolvendo "jogar no bicho". E seguiram voando, tentando não se preocupar com a linda visão do crepúsculo, que banhava as bordas das nuvens de um dourado perecente. Todos os dois sabiam que, dali a alguns minutos, estariam na mais completa escuridão. Nem a lua estava do lado deles. Também não ignoravam que o "Paulistinha" não possuía equipamento IFR (voo por instrumento). Identicamente era impossível tentar a leitura da bússola, visto que o pequeno avião não se catalogava no meio dos que possuem painel luminoso. Para completar o azar, à falta de uma lanterna, Toninho nem fósforos tinha, pois não fumava (não fuma até hoje). Restava, enfim, confiar na sorte, tentando firmar os pés nos pedais, no duvidoso intuito de não se desviar da rota estabelecida durante a meta do voo.


"Envolto pelo negro da noite, os dois aviões deviam ser dois pontos invisíveis aos olhos de algum camponês. Não existia[m] luzes nas pequenas cidades próximas, vitais para uma orientação. Vez por outra, Toninho contou ter tido medo de se chocar com o avião de Flamarion, forçando o "Paulistinha"a subir no máximo, o que evitava, no mínimo, as altas e traiçoeiras serras da região. 

"- Ao aparecer de relance, a luz permitiu a "leitura" - no modo de dizer, claro - da quantidade de combustível. A vareta estava definhando, se abaixando rapidamente. Um dedo e meio, calculei. Eu nem procurei firmar a vista mais para olhá-la, sabedor de que ficaria ainda mais tenso - disse ele.

"Pouco  adiantava olhar para os lados: a escuridão, o barulho do motor, um leve assobio do vento, descreveu, Toninho, era a única resposta. As esperanças de atingir Montes Claros estavam morrendo; ele não sabia mais onde se encontrava. "Flamarion deve estar por perto, também perdido" - pensava o aviador, dando uma sacudida na cabeça para desviar alguns persistentes pensamentos pessimistas. Piloto veterano, ele confiava muito na prática, não desconhecendo o quão difícil é manter um "Paulistinha" voando reto - ou horizontal - sem nenhuma referência nítida. Não se tem ideia a respeito da inclinação das asas ou do nariz do aparelho. É quando entra a sensibilidade do piloto: o avião pode, sem que ele perceba, estar voando torto, com o nariz baixo ou alto demais; pode estar sendo forçado a voar numa velocidade incompatível com a faixa normal de RPM para voo de cruzeiro (80 milhas/2.100 RPM); e o pior: pode se desviar da rota estipulada com a luz do sol. 

"Compenetrado nos simples comandos do "Paulistinha", Toninho procurava senti-los "vivos" entre suas mãos hábeis, coordenando, da mesma forma, os movimentos dos pedais. Estaria perto ou longe demais do seu destino? Não tinha a menor noção. Restava esperar, mantendo a calma e o avião nivelado. Volta e meia, perscrutava ao redor, os olhos varrendo, inquietos, a imensidão do espaço negro. "É, Flamarion deve estar por aí mesmo..." voltava a pensar. 

"De repente, emocionado, Toninho avistou uma luz longínqua, quase uma lamparina. "Se não for Montes Claros, pode ser - quem sabe? Coração de Jesus, Brasilinha ou Mirabela..." - raciocinou ele, mantendo-se firme na direção da luz. Com dez minutos de voo, na expectativa de o motor "engasgar" subitamente, indo espatifar-se nas terras abaixo, ele teve certeza de tratar-se de Montes Claros. "Graças a Deus!" - exclamou aliviado. A luz foi crescendo, ganhando brilho e maior formato, para se alongar, posteriormente, idêntica a um tapete de pedras preciosas, de brilho trêmulo. Restava agora o problema da gasolina, sem dúvida, no fim, conforme calculou o piloto.

"Pela experiência adquirida em voos noturnos locais, Toninho sabia o exato rumo do campo de pouso, e para lá se dirigiu, tentando localizar a casinha existente à beira da pista, que também, por medida de precaução, sempre mantinha uma luz acesa. Era o suficiente: sem ousar fazer o procedimento normal de pouso, Toninho reduziu o motor para 650 RPM - voo planado -, injetando o ar quente e firmando o manche para o avião realizar um pouso de três pontos - que consiste no toque de solo simultâneo do trem de pouso e a bequilha.

"Dando uma segunda exclamação de alívio, sentiu o "Paulistinha" tocar o solo e correr pela pista familiar. Manche colado à barriga, o aviador saboreava, pela janela aberta, um cheiro agreste de flores nativas. Estava são e salvo! Mas, para espanto seu, uma pequena surpresa havia sido reservada, de última hora, para Flamarion Wanderley: a gasolina do outro avião acabara justamente durante a aterrissagem, e por pouco Toninho Rebello não se choca com ele no meio da pista:

"- Ainda bem que eu vi o "Paulistinha" de Flamarion a tempo, conseguindo me desviar sem problemas, pois minha velocidade já era quase que a de rolagem (taxiamento). Ele teve sorte: sua gasolina poderia ter acabado na "perna do vento" (ao lado da pista), antes sequer de entrar na reta final. Bom piloto que era, Flamarion fez o procedimento normal de pouso. Eu fui imprudente - reconheço -, entrando "de sola" na cabeceira do campo. Mas também estava prestes a ficar sem combustível. Naquela noite fizemos uma verdadeira festa de comemoração. Além da viagem, comemoramos a preservação de nossas preciosas vidas...

"UM OUTRO SUSTO AÉREO    

"Uma outra aventura, só que vivida sem Toninho ou Flamarion darem conta da extensão de sua gravidade, teve lugar por essa mesma época (1944), durante um voo de "reconhecimento" que fizeram nas imediações de Montes Claros, sobrevoando o "Brejo das Almas" e uns povoados próximos. Por "medida de segurança", os pilotos levaram um par de para-quedas, pretendendo utilizá-los tão somente em caso de emergência. A "emergência" quase acabou acontecendo. Para sorte dos dois, o velho "Paulistinha" (voavam no mesmo aparelho) aguentou o tranco, parecendo compreender a inocência de seus ocupantes.:

"- Em pleno ar - conta Toninho -, uma altitude equivalente a seis mil pés, checando os instrumentos, percebemos que a temperatura do óleo excedera a máxima de 90 graus centígrados, com o ponteiro colando do pino do velocímetro. "Se passar a sair fumaça ou exalar cheiro de queimado, nós saltaremos" - sugeriu Flamarion. "Tudo bem", concordei. Afinal, estávamos de para-quedas! Fizemos uma curva de 90 graus, reduzimos o motor, e, "picando" o avião para aumentar a velocidade, tocamos em direção a Montes Claros, aproveitando as camadas térmicas, igual às que os urubus se utilizam para atingir altitudes elevadas. Para saltar, pensávamos que bastaria pular e puxar a cordinha. Nossa situação era crítica, mas não dava para receber lições de para-quedismo pelo rádio, pois "Paulistinha" não possui nenhum. Montes Claros era a única cidade que oferecia um seguro pouso alternativo. Poupando o motor, cintos desafivelados, e portas destravadas, continuamos voando normalmente, até avistarmos, meio fosco, uma agrupamento de casas: era Montes Claros. 

"Surpreendentemente, os aviadores aterrissaram sem sentir cheiro de queimado. Diante do olhar surpreso dos colegas, estranhando o regresso, eles explicaram que haviam sofrido uma pane. "Aí, para falar a verdade, foi que sentimos medo - um verdadeiro calafrio" - disse Toninho. Um dos colegas afirmou que fizéramos bem de não ter abandonado o "Paulistinha", ainda mais saltando de para-quedas novos, sem abri-los e proceder uma rigorosa inspeção. "E precisa?" - indagou Flamarion, achando aquilo um tanto burocrático. "É necessário, pois é a vida do para-quedista - você, por exemplo - que está em jogo. E não custa nada, convenhamos..." - disse o terceiro aviador, pondo-se a abrir os para-quedas, que ostentavam ainda o selo de fábrica. Mostrando os selos, ele fez um gesto indagativo com as mãos, abrindo-as em paralelo. Conclusão: com os selos - ou o lacre do fabricante - os para-quedas tinham a mesmíssima função de um monte de pano inútil. Jamais se abririam! Essa foi, conforme o veterano Toninho Rebello confessou, "uma lição memorável..."

Membros da diretoria e 3a turma de pilotos do Aeroclube de Montes Claros - Toninho é o primeiro, à esquerda da foto


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